sexta-feira, 29 de abril de 2011

Deus demonstra seu amor por nós


-   (...) O melhor modo de refletir, este ano, sobre o mistério da Sexta-Feira Santa é saber reler por inteiro a primeira parte da encíclica do Papa, «Deus caritas est». Não podendo fazê-lo aqui, quero ao menos comentar algumas de suas passagens que mais diretamente referem-se ao mistério deste dia. Lemos na encíclica:

      «O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João, compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Encíclica: “Deus é amor”. É lá que esta verdade pode ser contemplada. E começando de lá, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e amar». [5]

      Sim, Deus é amor! Se todas as Bíblias do mundo –foi dito– fossem destruídas por qualquer cataclismo ou furor iconoclasta e nos permanecesse somente uma cópia; e ainda que esta copia fosse assim danificada que só uma página estivesse agora inteira, e ainda que esta página fosse estragada que só uma linha pudesse ser lida agora: se tal linha for a linha da Primeira carta de João onde está escrito «Deus é amor», toda a Bíblia estaria salva, porque tudo está contido lá.

      O amor de Deus é luz, é felicidade, é plenitude de vida. É a torrente que Ezequiel viu sair do templo e que, aonde chega, cura e suscita vida; é a água que sacia toda sede prometida à samaritana. Jesus também repete a nós, como a ela: “Se conhecesses o dom de Deus”. Vivi minha infância em uma casa de campo a poucos metros de uma rede elétrica de alta tensão, mas nós vivíamos às escuras ou à luz de velas. Entre nós e a rede elétrica estava a via férrea, e, com a guerra em marcha, ninguém pensava em superar o pequeno obstáculo. Assim ocorre com o amor de Deus: está ali, ao alcance da mão, capaz de iluminar e aquecer tudo em nossa vida, mas passamos a existência na escuridão e no frio. É o único motivo verdadeiro de tristeza da vida.

      Deus é amor, e a cruz de Cristo nos é a prova suprema, a demonstração histórica. Existem dois modos de manifestar o próprio amor para os demais, dizia um autor do oriente bizantino, Nicolas Cabasilas. O primeiro consiste em fazer o bem à pessoa amada, em dar-lhe presentes; o segundo, muito mais comprometedor, consiste em sofrer por ela. Deus amou-nos no primeiro modo, com amor, isto é, de generosidade, na criação, quando nos encheu de dons, dentro e fora de nós; amou-nos com amor de sofrimento na redenção, quando inventou a própria aniquilação, sofrendo por nós as mais terríveis dores, a fim de convencer-nos de seu amor [6]. Por isso, é sobre a cruz que se deve contemplar agora a verdade de que «Deus é amor».

      A palavra «paixão» tem dois significados: pode indicar um amor veemente, «passional», ou um sofrimento moral. Há uma continuidade entre as duas coisas e a experiência quotidiana mostra quão facilmente de uma se passa à outra. Assim ocorreu também, antes de tudo, com Deus. Há uma paixão --escreveu Orígenes-- que precede à encarnação. É «a paixão de amor» que Deus desde sempre nutre em relação ao gênero humano e que, na plenitude dos tempos, levou-o a vir sobre a terra e padecer por nós. [7]

      Três ordens de grandeza

      A encíclica «Deus caritas est» de 2006 adiciona um novo modo de fazer apologia da fé cristã, talvez o único possível hoje e certamente o mais eficaz. Não contrapõe os valores sobrenaturais aos naturais, o amor divino ao amor humano, o eros ao ágape, mas nos mostra a originária harmonia, sempre a redescobrir e curar por causa do pecado e da fragilidade humana. «O eros --escreve o Papa-- quer-nos elevar “em êxtase” para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos» [8]. O evangelho está, sim, em concorrência com os ideais humanos, mas no sentido literal de que concorre à sua realização: cura-o, eleva-o, protege-o. Não exclui o eros da vida, mas o veneno do egoísmo do eros.

      Existem três ordens de grandeza, disse Pascal em um célebre pensamento [9]. A primeira é a ordem material ou do corpo: nela sobressai quem tem muitos bens, quem é dotado de força atlética ou beleza física. É um valor para não desprezar, mas o mais baixo. Acima dessa há a ordem do gênio e da inteligência, na qual se distinguem os pesadores, os inventores, os cientistas, os artistas, os poetas. Esta é uma ordem de qualidade diversa. Ao gênio não acrescenta e não tolhe nada o ser rico ou pobre, belo ou feio. A deformidade física da própria pessoa não tolhe em nada a beleza do pensamento de Sócrates e da poesia de Leopardi.

      Este valor do gênio é um valor certamente mais alto que o precedente, mas não ainda o supremo. Acima dele há uma outra ordem de grandeza, e é a ordem do amor, da bondade. (Pascal chama de ordem da santidade e da graça). Uma gota de santidade, dizia Gounod, vale mais de um oceano de gênio. Ao santo não acrescenta e não tolhe nada o ser belo ou feio, douto ou iletrado. Sua grandeza é de uma ordem diversa.

      O cristianismo pertence ao terceiro nível. No romance Quo vadis, um pagão pergunta ao apóstolo Pedro recém-chegado a Roma: «Atenas deu-nos a sabedoria, Roma a força; a vossa religião, o que nos oferece? E Pedro responde: o amor! [10] O amor é a coisa mais frágil que existe no mundo; é representado, e o é, como uma criança. Pode-se matar por muito pouco --vimos com horror na Itália nas passadas semanas--, como se pode fazer com uma criança. Sabemos bem no que se tornam o poder e a ciência, a força e o gênio, sem o amor e a bondade…

      Amor que perdoa

      «O eros de Deus pelo homem --prossegue a encíclica-- é ao mesmo tempo totalmente agape. E não só porque é dado de maneira totalmente gratuita, sem mérito algum precedente, mas também porque é amor que perdoa» (n. 10).

      Também esta qualidade refulge no máximo grau no mistério da cruz. «Ninguém tem amor maior que aquele que dá a vida pelos próprios amigos», disse Jesus no cenáculo (Jo 15, 13). Queria exclamar: Sim, existe, ó Cristo, um amor maior que dar a vida pelos próprios amigos. O vosso! Vós não destes a vida por vossos amigos, mas por vossos inimigos! Paulo disse que a duras penas se encontra quem seja disposto a morrer por um justo, mas se encontra. «Por um homem de bem talvez alguém se atreva a morrer; mas a prova de que Deus ama-nos é que Cristo, sendo nós ainda pecadores, morreu por nós»; «Cristo morreu pelos ímpios no tempo estabelecido» (Rm 5,6-8).

      No entanto, não se tarda a descobrir que o contraste é só aparente. A palavra «amigos» em sentido ativo indica aquele que te ama, mas em sentido passivo indica aquele que é amado por ti. Jesus chama Judas de «amigo» (Mt 26, 50), não porque Judas o amasse, mas porque ele o amava! Não há amor maior que dar a própria vida pelos inimigos, considerando-os amigos: eis o sentido da frase de Jesus. Os homens podem ser, ou fazer papel de inimigos de Deus, Deus não poderá jamais ser inimigo do homem. É a terrível vantagem dos filhos sobre os pais (e sobre as mães).

      Devemos refletir em que modo, concretamente, o amor de Cristo sobre a cruz pode ajudar o homem de hoje a encontrar, como diz a encíclica, «o caminho de seu viver e de seu amor». Isso é um amor de misericórdia, que desculpa e perdoa, que não quer destruir o inimigo, mas, no caso, a inimizade (cf. Ef 2, 16). Jeremias, o mais próximo entre os homens do Cristo da Paixão, pede a Deus dizendo: «Eu verei a tua vingança contra eles» (Jr 11, 20); Jesus morre dizendo: «Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).

      É justamente desta misericórdia e capacidade de perdão que temos necessidade hoje, para não deslizar sempre mais no abismo de uma violência globalizada. O Apóstolo escrevia aos Colossenses: «Portanto, como eleitos de Deus, santos e amados, revesti-vos de sentimentos (ao pé da letra: de vísceras!) de compaixão, de bondade, humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos mutuamente, se alguém tem motivo de queixa contra o outro; como o Senhor vos perdoou, assim também fazei vós» (Col 3, 12-13).

      Ter misericórdia significa apiedar-se (misereor) no coração (cordis) em relação ao próprio inimigo, entender de que matéria somos todos feitos e, portanto, perdoar. O que pode acontecer se, por um milagre da história, no Oriente Próximo, os dois povos há décadas em luta, de uma só vez, começassem a pensar uns no sofrimento dos outros, a apiedar-se uns dos outros. Não seria mais necessário nenhum muro de divisão entre eles. A mesma coisa deve-se dizer de tantos outros conflitos em ação no mundo, compreendidos aqueles entre as diversas confissões religiosas e igrejas cristãs.

      Quanta verdade no verso do nosso Pascoli: «Homens, paz! Na extensa terra grande é o mistério» [11]. Um comum destino de morte incumbe sobre todos. A humanidade é envolvida por tanta obscuridade e inclinada («prona») sob tanto sofrimento que deveríamos ter também um pouco de compaixão e de solidariedade uns pelos outros!

    . O dever de amar

      Há um outro ensinamento que nos vem do amor de Deus manifestado na cruz de Cristo. O amor de Deus pelo homem é fiel eternamente: «Eu te amei com amor eterno», diz Deus ao homem nos profetas (Jr 31, 3), e ainda: «Em minha lealdade não falharei» (Sl 89,34). Deus uniu-se para amar para sempre, privou-se da liberdade de voltar atrás. É este o sentido profundo da aliança que em Cristo tornou-se «nova e eterna».

      Na encíclica papal, lemos: «Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para suas íntimas purificações, que ele procure agora o caráter definitivo, e isso em um duplo sentido: no sentido da exclusividade – “apenas esta única pessoa” – e no sentido de ser “para sempre”. A amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade». [12]

      Em nossa sociedade, questiona-se cada vez com maior freqüência que relação pode haver entre o amor de dois jovens e a lei do matrimônio; que necessidade de «vincular-se» tem o amor, que é todo impulso e espontaneidade. Assim são sempre mais numerosos aqueles que rejeitam a instituição do matrimônio e escolhem o assim chamado amor livre ou a simples convivência de fato. Só se se descobre a profunda e vital relação que há entre lei e amor, entre decisão e instituição, pode-se responder concretamente àquela pergunta e dar aos jovens um motivo convincente para «unir-se» e amar para sempre e não ter medo de fazer do amor um «dever».

      «Portanto, quando há o dever de amar, --escreveu o filósofo que, depois de Platão, escreveu as coisas mais belas sobre o amor, Kierkegaard--, agora somente o amor é garantido para sempre contra toda alteração; eternamente livre em santa independência; assegurado em eterna santidade contra todo desespero» [13]. O sentido destas palavras é que a pessoa que ama, quanto mais ama intensamente, mais percebe com angústia o perigo que corre seu amor. Perigo que não vem dos outros, mas dela mesma. Essa sabe bem, de fato, ser volúvel e que amanhã, querendo ou não, pode já estancar-se e não amar mais ou mudar o objeto de seu amor. É já que, agora que está nela a luz do amor, vê com clareza qual perda irreparável isto comporta, eis que se previne «unindo-se» para amar com o vinculo do dever e ancorando, deste modo, à eternidade seu ato de amor posto no tempo.

      Ulisses queria chegar a rever sua pátria e sua esposa, mas devia passar através do local das sereias que os navegantes encontravam com seu canto e os levavam a bater contra os recifes. É um mito, mas ajuda a entender o porquê, ainda que humano e existencial, do matrimônio «indissolúvel» e, sobre um plano diverso, dos votos religiosos.

      O dever de amar protege o amor do «desespero» e o torna «santo e independente», no sentido que protege do desespero de não poder amar para sempre. Dai-me um verdadeiro apaixonado --dizia o mesmo pensador-- e ele vos dirá se, em amor, há oposição entre prazer e dever; se o pensamento de «dever» amar por toda a vida traz ao amante medo e angústia, ou não muito mais alegria e felicidade total.

      Aparecendo um dia da Semana Santa à Beata Ângela da Foligno, Cristo lhe disse uma palavra que ficou célebre: «Não te amei por brincadeira!» [15]. Cristo não nos amou verdadeiramente por brincadeira. Há uma dimensão lúdica e jocosa no amor, mas ele mesmo não é um jogo; é a coisa mais séria e mais cheia de conseqüências que existe no mundo; a vida humana depende dele. Ésquilo compara o amor a um leãozinho que se cria em casa, «antes dócil e terno mais que uma criança», com o qual se pode até brincar, mas que, crescendo, é capaz de fazer estrago e encher a casa de sangue. [16]

      Estas consideração não bastarão para mudar a cultura existente que exalta a liberdade de mudar e a espontaneidade do momento, a prática do «usar e jogar fora» aplicada também ao amor. (Encarregar-se-á, lamentavelmente, a vida de fazê-lo, quando ao fim se encontrar com as cinzas nas mãos e a tristeza de não ter construído nada de duradouro com o próprio amor). Mas que, pelo menos sirvam, estas considerações, para confirmar a bondade e a beleza da própria escolha àqueles que decidiram viver o amor entre o homem e a mulher segundo o projeto de Deus, e sirvam para animar muitos jovens a fazer a mesma escolha.

      Não nos resta outra coisa senão entoar com Paulo o hino ao amor vitorioso de Deus. Ele nos convida a fazer com ele uma maravilhosa experiência de cura interior. Pensa em todas as coisas negativas e nos momentos críticos de sua vida: a tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada. Contempla isso tudo à luz da certeza do amor de Deus e grita: «Mas em tudo isso somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou!».

      Levanta então o olhar; desde sua vida pessoal passa a considerar o mundo que o circunda e o destino humano universal, e de novo a mesma jubilosa certeza: «Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida..., nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem altura, nem a profundeza, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor» (Rm 8, 37-39).

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